Junho é o mês das marchas Pride, por excelência. Um pouco por todo o lado concretizam-se, umas autorizadas pelas autoridades vigentes, outras nem tanto, umas sem muito alarido pelos detractores dos direitos LGBT, outras provocando mesmo contra-marchas e/ou manifestações policiais antagónicas.
É o mês em que muito se fala de Stonewall, e do que lá se passou em 1968.
E afinal, que se passou no bar "Stonewall Inn" há 40 anos? Considerado por muitas pessoas o início das reivindicações dos direitos das pessoas homossexuais, foram três dias de tumultos e manifestações contra a perseguição e abuso por parte das forças policiais contra a população Gay. Claro que a revolta de Stonewall não foi, nem nunca poderá ser considerada como o despoletar de todo um movimento que alastrou a todo o mundo. Infelizmente, e apesar dos inúmeros autores que afirmem que sim, Stonewall não passou de uma continuação da revolta de Compton´s Cafeteria, ocorrida dois anos antes. Tal como a ridícula insistência que Thomas Beatie é o primeiro homem transexual grávido, também Stonewall não foi a primeira tentativa de dar resposta à repressão existente na época nos EUA.
Sobre a revolta de Compton's Cafeteria, protagonizada maioritariamente pela população T já escrevi um breve post em Outubro de 2007, que quem quiser pode rever clicando AQUI. Falemos agora um pouco sobre os acontecimentos de Stonewall e da importante presença e liderança T nestes acontecimentos.
De notar que tudo aconteceu em 1968, e nesta época não se falava muito de transexualidade e transgenderismo. O comum nesta época era falar-se no máximo em travestismo, logo era tudo gay.
O bar Stonewall Inn, conotado com os lados mais obscuros da sociedade e supostamente controlado pela máfia, era frequentado principalmente por gays afro-americanos e hispânicos, sendo que muitas das pessoas lá presentes eram travestis (transgéneros).
Por causa das supostas ligações à máfia, era alvo regular de rusgas, sempre nos mesmos moldes e por volta das mesmas horas. A 28 de Junho, no entanto, uma rusga inesperada aconteceu no Inn. Por volta da uma e vinte da manhã, oito polícias entraram no bar com um mandato de busca válido para procurar bebidas alcoólicas ilegais. Dos oito polícias apenas um se encontrava fardado. Começaram a questionar os clientes e a muitos deles pediram a identificação. Muitos foram acompanhados para fora do bar, e alguns foram mesmo detidos. A multidão que tinha sido levada para fora pela polícia, começou a ficar inquieta e mesmo zangada, acabando por iniciar tumultos fora do Inn. Enquanto a polícia enchia as carrinhas com os detidos, a multidão respondia com impropérios, até que eventualmente irrompeu a violência.
A activista trans Sylvia Rivera afirma que liderou o ataque. Atiraram-se garrafas à polícia, chegando-se mesmo a usar parquímetros como armas. Dave van Ronk, um cantor de música folk que passava por ali foi agarrado pela polícia, arrastado para dentro do bar e agredido. A revolta estava imparável. Depressa a notícia do que acontecia se espalhou pelas imediações, e muitos residentes e frequentadores de outros bares da área convergiram ao local. Quando a polícia se refugiou dentro do bar, a multidão bloqueou as entradas e tentaram pegar-lhe fogo.
Os protestos eram tão fortes que, de cada vez que a polícia dispersava a multidão, uma nova massa de pessoas formava-se nas suas costas, impedindo-os de acabarem com a revolta. Durante os vários dias de tumultos, a multidão de cerca de 400 pessoas continuou a lançar garrafas e pedras e a atear incêndios nas imediações do Inn. As tentativas frustadas da polícia para capturar os revoltosos esbarravam na rapidez dos manifestantes. Se fossem apanhados, seriam agredidos e imobilizados no chão. Começou-se a gritar "Gay power" e alguns activistas travestis começaram a cantar:
We are the Stonewall Girls
We wear our hair in curls
We wear no underwear
We show our pubic hair
We wear our dungarees
Above our nelly knees
Pela noite dentro, a polícia foi conseguindo isolar muitos transgéneros e pessoas não-conformistas de género, incluindo mulheres "masculinas" e homens "efeminados", geralmente agredindo-os. Na primeira noite foram detidas 13 pessoas e quatro polícias, bem como um número indeterminado de manifestantes sofreram ferimentos. Sabe-se que pelo menos dois manifestantes foram severamente agredidos pela polícia. A multidão agora estimada em cerca de 2000 pessoas defrontou 400 polícias.
As forças de segurança acabaram por ter de convocar forças adicionais, a Tactical Patrol Force, um esquadrão anti-motim originalmente treinado para lidar com manifestantes anti-guerra do Vietnam. Esta força tentou dispersar a multidão, que lhes mandou com uma chuva de pedras e outros projécteis, não conseguindo quebrar a concentração.
Eventualmente as coisas foram acalmando, mas a multidão regressou outra vez na noite seguinte. Embora menos violenta que a primeira noite, a multidão tinha a mesma energia da noite anterior. Escaramuças entre a polícia e a multidão foram-se sucedendo até por volta das quatro da manhã. O terceiro dia de tumultos sucedeu cinco dias depois da rusga ao Stonewall Inn. Nesse dia cerca de mil pessoas concentraram-se no bar e mais uma vez provocaram extensos danos.
Como se pode observar, a presença T nesta segunda revolta foi tão importante, pelo menos, como na primeira revolta, dois anos antes. Além da já referida Sylvia Guerrero, estiveram presentes, entre outras pessoas T, Marsha P. Johnson e Miss Majors, figuras de relevo na luta pelos direitos LGBT nos EUA.
É sem surpresa, no entanto, que se vê uma tentativa pela comunidade LG de minimizar e/ou silenciar o importantíssimo papel que a comunidade T teve ao protagonizar duas revoltas que ficaram para a história da luta pelos dieitos LGBT e que despoletaram por todo o mundo uma consciencialização e um activismo. No entanto Stonewall é conhecido como uma revolta gay.
No New England Trans Pride, uma Marcha que celebra o orgulho trans e que teve o seu nascimento este ano, não terá sido por acaso que o seu lema foi: "Remember Stonewall? That was us!" (Lembram-se de Stonewall? Fomos nós!) e onde foi relembrada a crítica participação da comunidade trans.
Não se pode deixar que outros, especialmente as comunidades L e G, eliminem a importante e histórica participação que a comunidade transgénero deu e dá, todos os dias, na luta pelos direitos LGBT. Muitas vezes com o custo da própria vida.
As Marchas pride celebram as revoltas de Compton's Cafeteia e de Stonewall, embora somente se fale nesta última. Mas que a comunidade T nunca se esqueça e se orgulhe de que estas revoltas contaram com a participação fulcral de muita gente T.
Stonewall (também) fomos nós!"
Texto publicado no PortugalGay
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